Coleção Clássica DIBICA
Todos os artigos criados ou enviados durante os primeiros vinte anos do projeto, de 1995 a 2015.Arnot, Frederick Stanley (A)
É estranho que este homem singular parece ter sido ignorado pela maioria das histórias comuns sobre o desenvolvimento das Missões Cristãs na África. No entanto, ele foi o homem que junto com David Livingstone foi um dos primeiros pioneiros na África Central, e foi instrumental abrindo o caminho para futuros exploradores, comerciantes e missionários. Ainda mais, ele estabeleceu as bases para uma empreitada cristã altamente bem sucedida na ampla faixa do continente que vai de Angola, através do sul do Congo, noroeste da Zâmbia e além de Katanga; uma área da África que foi conhecida pelas gerações seguintes como: “A Faixa Preferida”. Em particular, foi o trabalho de Frederick Stanley Arnot, que abriu o interior da Angola e a parte do Congo pela qual, finalmente, a ferrovia Benguela passou, assim como Katanga, rica área de minérios que se tornou área de disputas nos anos seguintes.
Frederick Stanley Arnot era escocês, nascido em Glasgow, no dia 12 de setembro de 1858, mas a sua família viveu por muitos anos em Hamilton, próximo a Glasgow, eram vizinhos da família de David Livingstone. Ele os conhecia bem, e foi esta ligação com o grande missionário e explorador, um fator importante em despertar o seu interesse pela vida missionária e de explorador na África Central. Livingstone era o seu herói e ele passava a maior parte do seu tempo na casa dos Livingstone onde analisava os mapas e utensílios do explorador guardados no Ático. Ainda menino, decidiu ir para a África Central e seguir os passos do seu herói. Saiu da escola aos 14 anos de idade e tornou-se aprendiz de marceneiro naval, para desenvolver habilidades que ele acreditava que seriam essenciais no seu trabalho futuro como missionário, mas não navegou para a África até julho de 1881, dois meses antes de completar 23 anos. Acompanhou-o outro jovem escocês, Donald Graham. Depois de chegar a Cidade do Cabo pegaram um vapor costeiro até Durban, de onde planejavam partir para o interior da África o final de agosto de 1881. Lamentavelmente, o seu companheiro ficou doente e foi aconselhado a ficar em Natal, mas Arnot continuou os seus planos, e pelos próximos sete anos o mundo ocidental não teve noticias dele. Esta sua primeira viagem, a qual provavelmente tenha sido a parte mais importante do seu trabalho como missionário e explorador, não só por ter estabelecido as bases para o avanço missionário da região, mas também pelas conseqüências políticas da sua amizade com o “rei” africano Msidi, que freqüentemente foi mal entendida.
Arnot começou a sua viagem através do Transvaal em direção ao reinado de Kama de Botsuana. O rei e seu povo tinham se tornado cristãos e Arnot foi bem recebido entre eles e permaneceu na capital Sheshong por três meses, antes de continuar os seus planos de alcançar o rio Zambezi. Na sua viagem atravessou o deserto de Kalahari até Lealui, a capital de Barotse do rei Lewanika, na qual ele chegou a dezembro de 1882 depois de muitas dificuldades, vários ataques de malária e outras doenças. Na verdade, ele foi detido por Lewanika por quase dezoito meses, mas utilizou este tempo para ensinar os filhos do rei a ler, e evangelizar um pouco. Finalmente, lhe foi dada a permissão para continuar rio acima e não Zambezi abaixo, ao encontro do povo Tonga, como ele queria. Ele viajou com um comerciante português, Silva Porto, e finalmente chegou até Benguela, na costa da Angola no final de 1884. Parece que a razão para viajar pela costa era achar um ponto de onde pudesse chegar ao interior da África melhor e mais rápido que partindo da costa leste. Na sua viagem ele atravessou a bacia do Rio Zambezi e do Rio Congo, e também identificou a nascente do primeiro. Ele conseguiu mostrar que o rio nascia no que é hoje o canto mais distante do noroeste da Zâmbia, ao norte de Mwinilunga, e não na atual Angola, onde se pensava anteriormente. Ele ficou por algum tempo com alguns missionários americanos da Junta de Missões Estrangeiras Americanas, no altiplano, num lugar chamado Bailundu, a certa distância da planície costeira. No entanto que estava com eles, recuperando a sua saúde, recobrando forças e repondo suprimentos, recebeu mensageiros do grande chefe Msidi, quem governava sob uma grande área que incluía a moderna Katanga, província do Congo, com o convite para que “homens brancos entrassem no país”.
Arnot finalmente continuou a sua jornada pela costa e ficou algumas semanas em Benguela, com a esperança de que outros se juntassem a ele no seu plano de voltar ao interior ao reino de Msidi, localizado na capital, a atual moderna cidade de Bunkeya em Katanga, província da República Democrática do Congo, uma área conhecida como Garenganze. Ele partiu para o reino de Msidi no dia 3 de junho de 1885, levando suprimentos para dois anos e uma pequena caravana de 40 integrantes. Chegou à capital de Msidi no dia 14 de Fevereiro de 1886 e ficou lá por dois anos até fevereiro de 1888, quando, se juntaram a ele dois outros missionários, Charles Swan e W. L. Faulknor, os quais ele pôde deixar como encarregados da missão na sua ausência. De fato, Arnot jamais retornou a Bunkeya e nunca mais viu Msidi.
Msidi era um governador tirano que tinha começado a sua vida como um comerciante de cobre no leste do Lago Tanganyika e que conseguiu apoderar-se das terras tribais do povo Basanga trinta e cinco anos antes da chegada de Arnot [1]. Sua influência abrangia uma extensa área do país e mantinha atividades comerciais com muita gente: na costa oeste da África comercializava marfim e outros bens, inclusive escravos; comercializava cobre com os comerciantes árabes e ferro com outros grupos tribais. Arnot, nos seus relatórios, referiu-se a Msidi como: “cavalheiro íntegro”, mas tal declaração parece dizer mais sobre Arnot do que sobre Msidi, pois o escocês tinha a reputação de nunca ter dito nada ruim sobre ninguém. Não há nenhuma dúvida, ao julgar por vários relatos contemporâneos, que Msidi era arbitrário, vingativo, cruel e déspota. Era um ditador militar que escravizou os seus vizinhos e cuja capital estava rodeada de paliçadas nas quais pendurava as cabeças dos seus inimigos. Assim mesmo, Arnot conseguiu estabelecer uma relação de trabalho com este homem estranho e difícil, e não há dúvida de que ambos mantinham um alto grau de respeito mútuo. O missionário recebeu terra onde construiu a sua própria moradia, uma pequena clínica, uma igreja e uma escola. Ele conseguiu providenciar atendimento médico básico para o povo local, e ensinar as crianças a ler e escrever. Também fundou um pequeno orfanato. Ele pode fazer isso sem nenhum tipo de apoio financeiro sistemático, mas viveu uma vida humilde e de fé no seu Deus, em quem confiava para providenciar as suas necessidades [2].
Arnot chegou a Inglaterra em 18 de setembro de 1888, percebeu que era famoso e foi convidado a apresentar um artigo importante na Sociedade Geográfica Real em Londres [3] na qual ele descrevia suas viagens e o seu descobrimento da nascente do Rio Zambezi. Em reconhecimento às suas explorações, a Sociedade o nomeou Pesquisador. Quando estava na Inglaterra também ativamente recrutou outros para que se juntassem a ele no trabalho na África Central. Quando estava pronto para retornar no começo do ano 1889, uns treze recrutas estavam prontos para navegar com ele. Três destes merecem uma menção especial: Dr. Walter Fisher, de Londres, que provavelmente foi o primeiro médico missionário no que hoje é a atual Zâmbia.depois de trabalhar em vários lugares no vale do alto Zambezi, ele fundou um ótimo hospital em Kalene Hill em 1906, próximo a nascente deste grande rio. O hospital muito maior e modernizado num novo local, ainda continua a servir o povo do noroeste da Zâmbia até hoje, e tem sido descrito como: “um grande centro de medicina curativa” [4]. O próprio Fisher era visto como: “o maior evangelista médico do norte de Rodésia” [5]. A sua irmã, Harriet Jane Fisher, também era membro deste grupo que estava pronto para navegar com Arnot em março de 1889. Antes de partir, no entanto, ela mudou o seu nome ao casar-se com Arnot em Greenwich no sul de Londres, no dia 26 de março de 1889 a partiu como sua esposa. A terceira pessoa a ser destacada era Daniel Crawford, outro escocês cujo trabalho futuro teria um grande impacto na área da África Central, e que se envolveu nos eventos que levaram a anexação do reino de Msidi pelos belgas.
Um problema constante enfrentado por Arnot em Garenganze (Katanga) assim como pelos missionários que chegaram depois, era a exigência de assessoria política e contínuo fornecimento de pólvora para as armas de Msidi. A “luta pela África” tinha começado e Msidi era bem consciente do conflito de interesses dos estrangeiros europeus e dos efeitos nocivos que isto tinha sobre seus súditos. Os missionários tentavam manter uma posição de neutralidade e evitavam se envolver em questões políticas locais, mas isto não era suficiente para Msidi que precisava de pólvora para as suas armas e assessoria para saber como lidar com o0s representantes dos poderes estrangeiros que começavam a entrar naquela área depois de 1890. Após negociações mal sucedidas com representantes britânicos, foi finalmente morto pelos líderes de uma missão enviada pelo rei belga Leopoldo II e o seu reino foi anexado em dezembro de 1891 ao novo Estado Livre do Congo, que era controlado pela Bélgica. Arnot tinha voltado a África uns dezoito meses antes desse evento, mas devido a problemas de saúde não pode fazer a longa viagem até o reino de Msidi em Garenganze, além dele e sua esposa estarem envolvidos na fundação de missões em Bih, atual região leste da Angola. Ele recebeu diversas mensagens de Msidi, e apesar de ter tentado uma vez fazer a difícil viagem até Bunkeya, a sua saúde o forçou a voltar. Não melhorou o suficiente para viajar até o abril seguinte, mas então já era muito tarde. Recebeu uma carta do representante belga, um inglês chamado W.E. Stairs, o qual foi instrumental no assassinato de Msidi, na qual contava os eventos desastrosos do ano anterior. Arnot tem sido criticado injustamente por não ter agido de forma mais ativa nas questões que envolviam Msidi, e em particular por não assegurar uma boa recepção ao representante britânico Alfred Sharpe, o que teria feito com que Katanga com a sua enorme riqueza mineral, tivesse se tornado britânica, e não belga. Não há ennhuma evidência documental que fundamente essas críticas ou o fato de que Arnot tivesse aconselhado Msidi a não assinar nenhum documento trazido a ele pelos europeus, fossem eles britânicos ou belgas. A evidência disponível sugere que missionários dos Irmãos Livres, inclusive Arnot, mantinham um papel neutro consistente e se recusavam a interferir em qualquer nível da política local [6]. Se os seus princípios os tivessem permitido a agir de forma diferente, não teria sido impossível que Katanga tivesse ficado sob influência britânica e não fosse parte da Zâmbia.
Arnot voltou para Inglaterra em 1892 e viveu com a sua família em Liverpool por dois anos, e desta base ele conseguia supervisionar o embarque de muitos suprimentos necessários na África. O tempo que passou na Inglaterra também lhe permitiu recobrar parte da sua saúde a qual tinha sido muito afetada pelas privações da primeira viagem. Assim mesmo ele conseguiu fazer novas incursões para a África Central e retornou a Katanga em 1894, viajando da costa leste pelo Rio Zambezi e pelos lagos: Nyasa, Tanganyika e Mweru, e chegou até a nova vila modelo que Dan Crawford e seus companheiros tinham fundado no Rio Luanza no final daquele ano. A sua saúde pobre o forçou a partir somente algumas semanas depois. Assim mesmo, depois ele conseguiu fazer várias viagens ao interior e foi instrumental na fundação de sedes de missões no caminho de Benguela a Katanga e enviou novos recrutas estrangeiros a estas. Muitas destas velhas missões ainda se mantém como igrejas ativas no centro da Angola, da república Democrática do Congo e na Zâmbia. A maioria delas agora sob o ministério de novos cristãos africanos, que continuam a construir sob as bases que Arnot criou tão efetivamente.
No começo de 1914, Arnot se propôs a revisitar a área de confluência dos Rios Kabompo e Zambezi no atual noroeste de Zâmbia. Ele visitou a área com outros dois missionários que estavam procurando um lugar adequado para uma nova missão, e conseguiu ajudá-los, mas ficou muito doente e teve que ser levado a Johanesburgo onde faleceu no dia 14 de maio de 1914. Talvez o tributo mais distinto que recebeu veio do Sir Ralph Williams, que mais tarde foi o governador de Newfoundland de 1909 a 1913, e que conheceu Arnot nas Cataratas Victoria em 1884. Ele escreveu que o Sr. Arnot: “foi um homem notável. Ele era o homem mais simples e mais verdadeiro de todos. Eu tenho conhecido muitos missionários sob muitas circunstâncias, mas um homem tão absolutamente desprendido, que viva o dia-a-dia, quase sem morada, quase sem nenhum dos utensílios que fazem a vida possível, jamais vi. Ele estava imbuído de um sentimento, e este era servir a Deus. E tenho memoráveis lembranças dele desde então como alguém que estava tão próximo do seu Mestre como ninguém que eu tenha conhecido” [7].
J. Keir Howard
Notas
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A história desta conquista é relatada geograficamente por Tony Lawman, From the Hands of the Wicked (Londres: Robert Hale, 1960), pp. 125-149.
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Um relato completo do acontecido entra Arnot e Msidi foi escrito pelo seu filho usando o material original do diário do seu pai. Veja R. S. Arnot, “F. S. Arnot e Msidi,” The Northern Rhodesia Journal, vol. 3, no. 5 (Maio 1958): pp. 428-434.
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Frederick Stanley Arnot, “Journey from Natal to Bihé and Benguella and thence across the Central Plateau of Africa to the sources of the Zambezi and Congo.” Proceedings of the Royal Geographical Society, vol. 2, no. 2 (Fev. 1898), pp. 65-82 (mapa: 128). Vários dos mapar de Arnot e esboços da vida africana estão preservados nos arquivos da Sociedade Geográfica Real de Londres. O catálogo pode ser visitado no site: http://catalogue.rgs.org/uhtbin/webcat.
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Robert I. Rotberg, Christian Missionaries and the Creation of Northern Rhodesia: 1880-1924 (Princeton: Editora da Universidade de Princeton, 1965), p. 95.
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Rotberg, Christian Missionaries, p. 76.
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A neutralidade dos missionários Irmãos nesta época é atestada em Ruth M. Slade, English Speaking Missions in the Congo Independent State: 1878-1908 (Bruxelas: Academia Real de Ciências Coloniais, 1959). Muito da correspondência original de Arnot com a missão dos Irmãos (“Ecos do Serviço”) em Bath, Inglaterra está preservada no Arquivo dos Irmãos Cristãos da Biblioteca da Universidade John Rylands, Manchester, Inglaterra e pode ser consultada mediante permissão.
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Sir Ralph Champneys Williams, How I Became a Governor (Londres: John Murray, 1913), citado em Lawman, p. 183.
Bibliografia
Frederick Stanley Arnot, “Viagem de Natal a Bih e Benguela e travessia do Platô da África Central até a nscente do Zambezi e do Congo.” Relatórios da Sociedade Geográfica Real 1889; 2 (Fev): pp. 65-82 (mapa: 128).
——–, Garenganze or Seven Years Pioneer Missionary Work in Central Africa. Londres (James E. Hawkins, 1893).
——–, Missionary Travels in Central Africa (Bath: Ecos do Serviço, 1914).
R. S. Arnot, “F. S. Arnot and Msidi” em The Northern Rhodesia Journal, Vol. 3, no. 5 (Maio 1958), pp. 428-434.
Ernest Baker, The Life and Explorations of Frederick Stanley Arnot (Londres: Seeley, Service e Co., 1921).
Tony Lawman, From the Hands of the Wicked (Londres: Robert Hale, 1960).
R. I. Rotberg, “Plymouth Brethren and the Occupation of Katanga” em Journal of African History, Vol. 2, (1964), pp. 285-297.
——–, Christian Missionaries and the Creation of Northern Rhodesia: 1880-1924. Princeton: Editora da Universidade de Princeton, 1965).
W. T. Stunt, G. P. Simmons, A. Pulleng, D. K. Boak, A. Pickering, e S. F. Warren, Turning the World Upside Down: A Century of Missionary Endeavour (Eastbourne: Editora Upperton e Bath: Ecos do Serviço, 1972), pp. 373-381, 389-390, 393, 415, 417.
F. A. Tatford, Frederick Stanley Arnot (Bath: Ecos do Serviço, 1981).
——–, That the World May Know, Vol. 6: The Dark Continent (Bath: Ecos do Serviço, 1984), pp. 321-352.
Este artigo foi recebido em 2005, e foi escrito e pesquisado pelo Dr. J. Keir Howard, médico consultor aposentado e padre anglicano que tem doutorado em medicina e teologia, de 1961 a 1966, serviu como médico missionário na Zâmbia.